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MAGISTRADOS.

A FORMAÇÃO E O RELACIONAMENTO

 

Maria Doralice Novaes

ARTIGO PUBLICADO NA REVISTA DA ENAJUD EM DEZEMBRO/15

O relacionamento em geral. O do magistrado com outros magistrados e com os servidores.

 

Penso que poderei acrescentar a respeito dessa questão a quem quer que seja. Imagino os novos magistrados pós-graduados no tema. São todos jovens dessa nova era. Da era digital, das comunicações, da informática.  Estou certa de que todos são personagens e não meros espectadores desse novo tempo.

 

No entanto, como não posso me esquivar da orientação que me foi passada, proponho que esqueçamos essa forma de comunicação que todos tão bem conhecem, para tentarmos pensar nas formas tradicionais de relacionamento que, são a essa data um grande desafio.

 

É que a vida funcional do magistrado, apesar da forte influência da tecnologia da informação, tem altíssima incidência dessa formatação antiga de comunicação, a real, a pessoal, a de enfrentamento. Isso, tanto nas audiências, como com partes, testemunhas, advogados, no trato com os servidores e com os demais magistrados, nossos colegas.

 

Lutamos, dia a dia o bom combate. Participamos das questões sociais e vemos que o juiz, ao contrário do que se pensa, não é neutro, nem vazio. É antes de tudo um cidadão com nervos, com alma, com coração.

 

E é sobre isso que, agora lhes dou duas notícias. Uma boa e outra má.

 

A notícia boa é que a imagem austera e carregada do magistrado de outrora saiu de moda.  Hoje ele é reconhecido na sociedade como um cidadão comum. Todos já sabem que ele tem problemas, angústias, conflitos; que tem desesperos, crises, amores, ódios; que tem tudo o que qualquer pessoa normal tem.

 

E tem mais. Sabe-se mais do que tudo, que ele não nasceu magistrado.

 

A notícia ruim, é que às vezes acontece de, ao se deparar com esse mundo novo, cheio de movimentos e de excelências, alguns novos magistrados se tornaram vaidosos em demasia, orgulhos e até mesmo arrogantes. Chamam a isso de ‘magistratite’ ou ‘juizite’.

 

Os termos, é claro, não estão nos léxicos. Tampouco nos dicionários jurídicos, mas, certamente, quem pertence ao meio, já ouviu falar deles.

 

Trata-se de expressões cunhadas no meio forense para designar a atitude de alguns de nós que ferem o dever de urbanidade; que maltratam os serventuários, o público, os advogados e até os colegas.

 

Por sorte, são poucos os que são acometidos por esse mal. Mas, há de se ficar atento, o tempo todo, para não ser vitimado por ele; para evitar surpresas desagradáveis e até mesmo perigosas, que tendem a levar-nos ao egocentrismo, a uma vida de continua tensão e de isolamento.

 

E é aqui, a meu ver, que tem que entrar um elemento importante nessa química: a razão e, com ela, aprender a analisar as emoções, a entendê-las, a conduzi-las e a racionalizá-las. Essa é uma tarefa fundamental para o magistrado. É a única forma que se tem para se alcançar o necessário equilíbrio. E o equilíbrio, meus caros, é único meio de se distanciar do perigo da ‘juizite’ ou “magistratite”.

 

Devemos pensar, racional e demoradamente, sobre o exercício do poder que nos é concedido com a toga e, sobretudo, sobre seus limites. Saber que não é preciso sacrificar os demais papéis da vida para exercer o de magistrado; que não é preciso fechar-se num isolamento injustificável para sermos bons profissionais. Entendermos que basta que saibamos discernir os papéis para, na hora de julgar, assumirmos o de juiz e esquecermos dos outros e, sobretudo, que é só naquele momento é que somos juízes, e não pais, filhos, amigos, vizinhos, compadres ou conterrâneos.

 

E é esse exercício racional, sobre o ser e o dever ser, que vai nos conduzir ao necessário equilíbrio.

 

Permitam-me, a propósito, citar uma lenda chinesa a respeito do tema.

 

Conta essa lenda que certa vez, achava-se Kung Fu, conhecido por nós como Confúcio, o grande filósofo, na sala do rei. Em dado momento, o soberano, afastando-se por alguns instantes dos ricos mandarins, dirigiu-se ao sábio chinês e lhe perguntou: "dizei-me, ó honrado Confúcio. Como deve agir um magistrado? Com extrema severidade a fim de corrigir e dominar os maus, ou com absoluta benevolência a fim de não sacrificar os bons?" Ao ouvir as palavras do rei, o ilustre filósofo conservou-se em silêncio. Passados alguns minutos de profunda reflexão, chamou um servo e pediu-lhe que trouxesse dois baldes, um com água fervente e outro com água gelada. Havia na sala, adornando a escada que conduzia ao trono, dois lindos vasos dourados de porcelana. Eram peças preciosas, quase sagradas, que o rei apreciava muito. E, com a maior naturalidade, ordenou o filósofo ao servo: "quero que enchas esses dois vasos com a água que acabas de trazer, sendo um com a água fervente e o outro com a água gelada!" Preparava-se o servo obediente para despejar, como lhe fora ordenado, a água fervente num dos vasos e a gelada no outro, quando o rei, saindo de sua estupefação, interrompeu-o com incontida energia: "que loucura é essa, venerável Confúcio! Queres destruir essas obras maravilhosas? A água fervente fará, certamente, arrebentar o vaso em que for colocada e a água gelada fará partir-se o outro!" Confúcio tomou, então, num dos baldes misturou a água fervente com a água gelada e, com a mistura assim obtida, encheu os dois vasos sem perigo algum. O poderoso monarca e seus mandarins observavam atônitos a atitude singular do filósofo. Este, porém, indiferente ao assombro que causava, aproximou-se do soberano e falou: "a alma do povo, ó rei, é como um vaso de porcelana, e a justiça é como água. A água fervente da severidade ou a gelada da excessiva benevolência são igualmente desastrosas para a delicada porcelana."

 

Como veem, a razão, o equilíbrio, a moderação são as virtudes que se exigem de um magistrado, desde os tempos de Confúcio.

 

Naquele tempo já se dizia que o bom relacionamento entre os indivíduos passa, necessariamente, pelo respeito aos pais, pela veneração aos antepassados, pela humildade e pelo domínio das paixões.

 

Confúcio dizia também, que o melhor caminho a ser trilhado é o caminho do meio e, por conta dessa tese propugnava que ao magistrado seria vedado trilhar cegamente uma doutrina qualquer a ponto de desprezar os ensinamentos de todas das outras.

 

Bem, estou aqui citando Confúcio porque penso que ao trocar a beca pela toga os novos magistrados estarão abandonando também uma antiga tradição.  Estarão deixando a armadura de um gladiador, para vestir as vestes de uma dama e de um cavalheiro.

 

Digo isso porque as faculdades de direito treinaram e treinam a todos os seus alunos tendo como princípio, o caráter contraditório dos debates judiciais e, ao fazê-lo, habilitaram-nos para uma luta armada. Essa luta, de fato, faz parte da profissão de advogado. Aliás, é um belo ornamento que se empresta à advocacia.

 

De qualquer maneira, os advogados que ainda estão dentro dos novos magistrados (mesmo que, na prática, alguns não o tenham sido) ainda estão acostumados com esta guerra, com essa combatividade.

 

Doravante, contudo, a sociedade e até mesmo a advocacia exigirá uma nova postura. Exigirá uma atitude conciliadora. E isso exigirá de cada novo magistrado num necessário ajuste de foco.

 

Precisarão tentar criar uma atmosfera de diálogo, onde as partes se sintam em equilíbrio e livres para discutir o conflito, a ponto de analisá-lo, reciprocamente, sob a perspectiva do outro. Devem abster-se de expressar seus valores e convicções. Devem simplificar a linguagem.

 

Quero com isso dizer a vocês que para exercer essa nossa tarefa, vcs tb terão que lutar, sim. Mas será uma nova luta. A luta para por fim ao conflito. E, ao fazê-lo espero que façam “sem perder a ternura jamais”.

 

Devem saber que estarão, por muitas vezes, diante de situações penosas e indesejáveis e que terão vontade de perder a calma! Mas, se tiverem conquistado a serenidade, qualquer que seja o tipo e a intensidade da provocação, saberão conduzir o evento, sempre altivos, altaneiros e, sem ostentação.

 

Minha sugestão é no sentido de que toda vez isso ocorrer, vcs respirem fundo e aguardem que seu oponente ou provocador esgote todo o palavrório, que descarregue todas as emoções e todos os descontroles para, então, buscando compreender a atitude dele, interceder, retrucar com paciência e, assim, anular os destemperos recebidos.

 

Bem sei que isso não é fácil. E tb não estou aqui apregoando que devam permanecer calados. Não claro que não! Digo que, ao rebater, o façam com firmeza, com elegância.

 

Isso mesmo! Devem se mostrar elegantes. Aliás, ser elegante nunca é demasiado vão. Ser elegante é mostrar sua própria força, fazendo-o com muita lhaneza.

 

O comportamento elegante sempre está presidido pela delicadeza, pela finura de espírito. A elegância, a educação esmerada, facilita em grande modo a convivência. A elegância no trato, nos gestos e até nas vestes, por que não?

 

Há uma parábola que considero apropriada à questão. Hei-la:

 

“Conta-se que um circo pegou fogo. O responsável pelo recinto erguido em lonas mandou imediatamente um palhaço à aldeia próxima com um pedido de socorro. Este por sua vez, estava para entrar em cena, vestido, portanto, com roupas apropriadas para as momices e, não tendo tempo para trocar-se, eis que o fogo poderia alcançar proporções funestas, correu assim mesmo como estava. Ao chegar à aldeia e relatar o ocorrido, as pessoas não acreditaram no que ouviam. Achavam que se tratava de um expediente para servir de atrativo para levá-los a verem os trabalhos no picadeiro. Aplaudiram e riram às gargalhadas. O palhaço sentia um desespero que lhe ameaçava a verter em lágrimas. Buscava esclarecer na melhor forma possível que nada daquilo era um ardil, que o circo estava, mesmo, em chamas. Tudo em vão. Os aldeões só compreenderam a emergência quando as labaredas, espalhadas pelos campos secos, atingiram a colheita e destruíram a pequena povoação.”

 

Pois é, vejam através dessa alegoria, que o propósito pode se traduzir no seu objetivo ao usar determinado traje, mas que o inverso também pode ocorrer.

 

É por isso que eu tomo a liberdade de dizer: se quiserem causar impressão de simplicidade, recato, seriedade, altivez, intelectualismo, não se esqueçam: sua imagem deve ser sua aliada e, não, sua antagonista.

 

E a palavra chave, nesse tópico, é a adequação. Essa é a marca das pessoas elegantes. Elas devem saber equacionar a sua imagem pessoal adequando-a ao seu tipo físico, à sua idade, à hora, ao local que frequentam.

 

E o magistrado, como qualquer outro profissional, não pode se esquecer disso. E, mais, não pode jamais se esquecer que no nosso meio não há muito espaço para ousadias na aparência.

 

Serenidade, equilíbrio, moderação, elegância, são, sem dúvida, importantes nas relações interpessoais de qualquer natureza. Mas não pode se esquecer que, no exercício das funções, os magistrados terão também, atribuições de comando.

 

Isso, é claro, em relação aos servidores.

 

Nesse tipo de relação, além da serenidade, do equilíbrio, da moderação e da elegância, os juízes precisarão exercer a liderança. Só assim ganharão o apoio da equipe.

 

Agora, vem a grande indagação. O que é ser líder? Como exercer uma liderança?

 

Líder, nada mais é do aquele que consegue explicar de forma simples o que deseja atingir, para que todos os auxiliares entendam claramente o que precisa ser feito.

 

Parece fácil?  Nem sempre, sobretudo na Casa de Justiça.

 

Ali, a gente precisa vencer a constante perda da motivação do servidor público, sua falta de reconhecimento, de conhecimento dos efetivos objetivos da atividade que realiza, a ausência de uma perspectiva de progressão no futuro, os processos mal estruturados e a inépcia da administração pública.

 

Como fazer isso?

 

Penso que o servidor precisa, apenas, ser respeitado. Ser tratado como pessoa importante      que é. Todos devem saber que tão importante quanto o juiz que absolve ou condena é o assessor que pesquisa; é o oficial de Justiça que efetiva a ordem do juiz; é aquele que cuidou para que a energia elétrica não faltasse, para que o computador não travasse, para que o papel e a tinta viessem em quantidades suficientes. Importante é quem extrai as cópias que acompanharão o mandado, o digitador que preparou o documento e o diretor que o subscreveu. Importantes são os que tornam o ambiente limpo, confortável e seguro.

 

Eles precisam ser lembrados que sem eles, não há sentença, não há liminar, não há antecipação de tutela... não há nada.

 

Todos precisam saber que as necessidades sempre são muitas e que os recursos financeiros sempre serão escassos, mas que, se nos falta dinheiro, devemos usar, sempre, a criatividade e que a criatividade sempre será benvinda.

 

É preciso que o servidor saiba que sempre encontrará no magistrado, o parceiro adequado para qualquer ato criativo, tanto para que o ajude a botar os pés no chão, se ele for muito sonhador, quanto para que o ajude a voar entre as nuvens, se for ele do tipo concreto.

 

Se mostrarmos para os servidores o quanto eles são necessários, terão, neles, um grande aliado. Além comprometido com seus propósitos.

 

Para concluir resta, falar um pouco, sobre o relacionamento entre os magistrados, já que não se pode esquecer que há uma organização chamada, magistratura.

 

Nela reina entre alguns de seus membros, equivocadamente, um sentimento de hierarquia: juiz substituto, juízes de instância inferior, desembargadores e ministros de tribunais.

 

Nesta hipotética hierarquia, aliás, os Juízes Federais se colocam num patamar ainda mais superior: não são Juízes de Direito, nem do Trabalho, mas sim Juízes Federais. Tudo com letra maiúscula e com muito néon.

 

Para esses indivíduos, na base desse esquisito organograma hierárquico, estariam os senhores, os juizes substitutos que, por vezes, contra atacam afirmando que há um patamar ainda mais abaixo, onde estariam inseridos os membros do Ministério Público, os Delegados de Polícia, os agentes, policiais, etc.

 

Esse organograma que lembra uma cadeia de comando militar, não sei se por ranço do regime monárquico ou do regime de exceção que vivemos, constitui uma forma equivocada de ver a organização.

 

A pirâmide hierárquica é, em verdade, o esqueleto ideal para criar e manter o autoritarismo, combinado ao servilismo e fazer do controle e da disciplina, os valores preponderantes da cultura organizacional.

 

Há que ficar bem claro, aqui e, agora, que não existe hierarquia entre os colegas da magistratura. 

 

Aqui, os sangues se cruzam e as vocações de confundem.

 

É que claro que não podemos deixar de lembrar, que existe uma hierarquia processual ou recursal, que visa garantir maior segurança aos julgados e, mais, que a verdadeira liberdade do magistrado só existirá quando houver respeito para com os Tribunais e suas respectivas decisões.

 

Isso não significa, contudo, que existam juízes mais ou menos qualificados. Mais ou menos importantes. São, todos, parte de um único grupo. Tem, todos, os mesmos interesses.  

 

Não pode haver subserviência. No plano interno, precisamos avançar na desmistificação de uma visão vertical, hierarquizada e hierarquizante, entre o 1º e o 2º graus. É preciso, pois, descartá-la para imaginá-la na horizontal.

 

É preciso saber, sempre, como se conectar com todos os pares, com os colegas de trabalho em qualquer posição, pois só o agrupamento é capaz de promover mais energia, mais comprometimento, mais inovações para nossa vida profissional.

 

Nunca devemos esquecer que vivemos numa democracia e que esta nas Organizações não é construída se não houver participação e dialogo.

 

E estes são os fatores que revelam o grau de adesão de cada um de nós na contínua construção e aprimoramento dessa nossa organização e, com isso, assumirmos um compromisso de cidadania com a realização do bem comum.

 

Há necessidade do diálogo, da participação consciente. O poder sempre deve perder espaço para a competência.

 

 

                                   Maria Doralice Novaes

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