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A (DES) IGUALDADE DE GÊNERO NA TRAJETÓRIA PROFISSIONAL DA MULHER BRASILEIRA

 

Maria Doralice Novaes

Texto publicado no Anuário do IBA (International Bar Association) – 2015 – Judges Forum – Discrimination and Equality Law Commitee - Cape Town – South Africa

“Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita: a vocação é um afeto” (Prado, Adélia. Manuscritos de Felipa, p. 104)

 

 

 

Última filha e a única mulher de uma família composta de quatro irmãos fui a primeira do clã a cursar uma universidade. Nunca estudei em escolas de elite ou de destaque. Nascida que fui numa sociedade machista, de uma família simples da periferia de São Paulo, cujo pai meio negro meio índio ganhava a vida como operário da construção civil, só o acaso pode justificar minha trajetória profissional, a que me fez chegar ao grau maior da carreira de um magistrado, a Presidência de um Tribunal.

 

O acaso, mas talvez, também a presença nítida, na minha formação, de segurança, de estabilidade e de modelos de comportamento positivos a serem seguidos, todos vindos de um casal corajoso que, juntos, aceitaram e respeitaram as diversidades, numa união interracial.

 

Meus pais nunca conseguiram ganhar dinheiro, mas isso não os impediu de fazer com que nós tivéssemos uma infância privilegiada. Nada de essencial nos faltou. Nunca sequer soubemos que éramos pobres. Éramos tratados com disciplina, incentivo e amor.

 

Descobri cedo, pela figura de minha mãe, auxiliar de enfermagem, trabalhadora incansável, que uma sociedade sem preconceito e sem gênero ainda estava muito longe da realidade do nosso país e que não obstante a presença feminina no mercado de trabalho era sempre permeada por diversas desigualdades.

 

Isso porque as mulheres, apesar de serem mais da metade da população brasileira e de estudarem mais que os homens, tinham menos chances de emprego, ocupavam os piores postos e ganhavam menos do que o universo masculino trabalhando nas mesmas funções.

 

Constatei que não era fácil lutar contra preconceitos e verdades legitimadas socialmente; que não era fácil fugir do padrão; que não era fácil inventar a própria vida.

 

Compreendi também que o serviço público constituía um espaço propício à profissionalização das mulheres. Isso porque havia regras claras e objetivas que orientavam o acesso pela via do concurso público, aonde prevalecia a igualdade e o princípio da capacidade, em torno do qual outra distinção não havia, senão a das virtudes e dos talentos dos indivíduos.

 

Resolvi trilhar por este caminho. Pareceu-me mais sensato. Através dele encontrei o Judiciário e a Magistratura que conquistaram minha admiração e meu respeito e que me proporcionaram um trabalho profícuo que ultrapassa, em muito, uma simples atividade profissional.

 

De fato, nunca reconheci a magistratura como profissão, no sentido de atender apenas às minhas necessidades de subsistência. Ela sempre foi, para mim, bem mais do que isso. Passou a ter um aspecto fundamental na minha vida. Passou a atender não só as minhas necessidades materiais, como, também, as espirituais. Isso porque nela somam-se os valores morais, o conhecimento, a criatividade e a experiência.

 

A compreensão de que o acesso pelo concurso público era um dos únicos meios garantidores do princípio constitucional da isonomia entre homens e mulheres, por óbvio, não foi privilégio só meu. Muitas outras mulheres seguiram o mesmo trajeto. Hoje, boa parte da base do Judiciário está ocupada por mulheres como eu que alcançaram suas posições pelo esforço e luta dentro de suas respectivas carreiras; que conquistaram seu espaço por competência e merecimento.

 

Mas é preciso deixar claro o quanto é difícil aceitar as mudanças que ainda não são legítimas socialmente. Mesmo no Judiciário não podemos pensar em uma verdadeira igualdade de gênero.  A desigualdade entre homens e mulheres persiste também nessa seara e é muito significativa. A via democrática do concurso público fez com que homens e mulheres ingressassem nas carreiras jurídicas aproximando-os no presente. Os valores do passado, contudo, ainda resistem e repercutem profundamente no futuro.

 

Basta elevarmos o olhar para o alto, em direção ao topo da pirâmide da Justiça para identificarmos clara e visivelmente as reproduções das desigualdades. Quanto maior é o poder de decisão dos cargos, menor é a participação feminina.

 

Como já salientado, a base do Judiciário está ocupada por muitas mulheres, representando, hoje, cerca de 40% de seu total. Contudo, na maior cidade do país, São Paulo, as Cortes Regionais já identificam a disparidade: o Tribunal de Justiça considerado, aliás, o maior tribunal do mundo constituído que é por 360 desembargadores tem apenas 19 mulheres em sua composição, o Tribunal Regional Eleitoral, apenas duas e o Tribunal Militar, nenhuma.

 

No âmbito federal, a desigualdade se repete. O Tribunal Superior do Trabalho composto por 27 ministros, 3 deles, apenas, são mulheres da carreira. A Corte Máxima da Nação, o Supremo Tribunal Federal, com seus 11 ministros, tem pouquíssima representatividade feminina, apenas duas.

 

A única exceção, talvez a confirmar a regra, é aquela se que vê na Corte Regional que tive a honra de presidir, o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo. Dos seus 94 membros, 47 são mulheres.

 

Está claro, pois, que apesar dos avanços, a condição feminina geral é de vulnerabilidade e precariedade, e a desigualdade de gêneros ainda é realidade para as mulheres brasileiras.

 

É bem verdade que, de minha parte, mormente na trajetória profissional no Tribunal Regional do Trabalho, jamais me senti discriminada. Esse testemunho, contudo, não reflete a realidade social.

 

Há muito trabalho ainda a ser feito nessa senda. Foi preciso que a Lei Maria da Penha e, antes dela, a própria Maria da Penha Maia Fernandes despertassem a consciência do país para a necessidade de se combater a crueldade bruta da violência doméstica e familiar.

 

No mundo do trabalho convencional não é diferente: Embora o ambiente profissional seja também um lugar do feminino, perseverante e sensível que não cessa de articular as diferenças humanas, as mulheres continuam tendo renda inferior ao homem; as taxas de desemprego são maiores em relação a elas; exercem profissões menos valorizadas; são a maior parte da população pobre; sofrem com a distribuição desigual das tarefas domésticas.

 

Esse tema, aliás, me faz lembrar uma passagem descrita por Mia Couto que, ao cobrir, na condição de jornalista, em Maputo, a celebração do dia da mulher, vivenciou algo extremamente revelador. Relata o festejado autor moçambicano que “logo no início do encontro cantaram-se e clamaram-se os obrigatórios vivas... ‘viva a mulher’ e centenas de braços bem másculos e vozes ásperas se erguiam concertados num único e vigoroso arremesso”. Quando, porém, o líder, “levantando os braços a encorajar as massas iniciou o seguinte mote: ‘somos todos mulheres’, um silêncio espantado, uma atrapalhação geral percorreu os estivadores... Ninguém clamou a plenos pulmões. E os que timidamente erguiam a voz, nunca passaram de uma minoria... Os estivadores estavam dispostos a declarar seu apoio à mulher, mas recusaram-se a pensarem-se renascidos sob outra pele, dentro de um outro gênero. ” (in “E se Obama fosse Africano” Companhia das Letras, pg. 134)

 

Relato esse episódio porque ele confirma tudo aquilo que todos sabemos: é fácil ser-se solidário com os outros. Difícil é sermos os outros. Nem que seja por um instante, nem que seja de visita.

 

Daí a importância dos debates e eventos sobre essa questão tão complexa. Buscar uma compreensão adequada, para além dos preconceitos, do senso comum, dos interesses materiais, dos costumes e do modo de vida de povos, grupos ou pessoas, fazendo-o levando a sério o ponto de vista, as características e a alma feminina. Fazer com que não nos esqueçamos das outras mulheres, as mulheres da vida real, as quebradeiras de coco babaçu no Maranhão. As mulheres da castanha, da juta, do capim dourado do Tocantins. Das rendeiras do Nordeste, das artesãs, das cozinheiras, das médicas, das enfermeiras, das domesticas. As mulheres da construção civil, as empresárias, as fazendeiras, as comerciantes, secretárias, engenheiras. A mulher dona de casa na sua rotina estressante, repetitiva e pouco reconhecida.

 

Rendo a elas minhas homenagens porque sei que só conhecendo e respeitando profundamente o diferente é que se constrói o novo. E, mais, que isso só pode ser feito com forte determinação, atributo que seguramente temos por demais.

 

Afinal, com o grito de Clarice Lispector podemos todas dizer: SOMOS MANSAS, MAS NOSSA FUNÇÃO DE VIVER É FEROZ.

                                 

 

 

 

                         MARIA DORALICE NOVAES

2015

 

MARIA DORALICE NOVAES é paulistana. Graduou-se em direito. Tem diversos cursos de extensão, inclusive os de Gestão Pública, Gestão Avançada Sênior, Estratégia e Liderança. Ingressou na magistratura em 1980. Exerceu a função de Juíza Presidente da 6ª Junta de Conciliação e Julgamento da Cidade de São Paulo de 1984 a 1995. Foi promovida para o cargo de Desembargadora Federal do Trabalho em 1995. Atuou como membro titular de Comissão Examinadora em inúmeras Bancas de Concurso. Atuou em Brasília, junto ao TST de 2004/2010 como Ministra Convocada. Integrou, por três vezes consecutivas, por escolha do Pleno do TST, lista quíntupla para preenchimento da vaga de Ministro da Corte. Foi Conselheira do Conselho Nacional da Justiça do Trabalho. Presidiu Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região no biênio 2012/2014. Aposentou-se em 2015 dedicando-se, hoje, à auditorias e consultorias jurídicas. Atua também como parecerista. Preside e coordena a Comissão de Informatização do TRT/2 e de Implantação do Pje em São Paulo.

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