ATIVIDADES ARTÍSTICAS. DESNECESSIDADE DE INSCRIÇÃO COMO CONDIÇÃO PARA O EXERCÍCIO DA PROFISSÃO. INEXIGIBILIDADE DA LEI 6.533/78.
ARTISTICS PROFESSIONS. REGISTRATION NOT NECESSARY AS A CONDITION FOR THE EXERCISE OF THE PROFESSION. UNENFORCEABILITY OF THE LAW 6.533/78.
Maria Doralice Novaes
A arte é a auto-expressão lutando para ser absoluta.
(Fernando Pessoa)
Resumo. A regulamentação de atividade profissional depende da demonstração de existência de interesse público a proteger, devendo observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, somente se justificando naquelas atividades profissionais que tenham algum potencial lesivo. Portanto, não é razoável que se exija a inscrição de que trata a Lei 6.533/78 como condição para o exercício da profissão daqueles que desenvolvem atividades artísticas, já que tal atividade não representa qualquer risco ou ofensa a interesses públicos relevantes.
Abstract: The regulation of professional activity depends on the demonstration of the existence of public interest to be protected, and must observe the principles of reasonableness and proportionality, only justifying those professional activities which have some potential harmful. Therefore, it is unreasonable to require the registration referred to in Law 6,533 / 78 as a condition for the exercise of the profession of those who develop artistic activities, as this activity poses no risk or harm to relevant public interests.
Palavras Chaves: Atividade artística. Inscrição. Liberdade profissional. Interesse social Lei 6.533/78.
Key Words: Artistic activity. Inscription. Professional freedom. Social interest. Law 6.533/78.
1. O conflito da Lei 6.533/78 com a atual Ordem Constitucional.
A carreira artística, matriz histórica das carreiras nas indústrias criativas, sempre foi cercada por uma aura romântica. O artista é frequentemente representado como é alguém que vive à margem da sociedade, que trabalha por vocação e amor, sacrificando sua vida pessoal e que não aceita se submeter às normas sociais e do mercado.
Durante muito tempo, o trabalho dos artistas foi mantido e condicionado pelos mecenas. Hoje, a relação entre o artista e seu mercado pode ser intermediada por empresas, agentes ou representantes. No entanto, é marca recorrente o alto grau de autonomia na gestão da própria carreira. Esta condição implica em deter certas competências e definir algumas estratégias de carreira.
Sendo iniciativas de orçamentos baixos, em regra, as atividades do profissional independente precisam, tanto em trabalho individual como em coletivo, de um sindicalismo atuante, que possa promover troca de ideias, num projeto contínuo de fomento à pesquisa.
Não é isso, contudo o que nossa realidade revela. Entre a arte e o sindicalismo há, em verdade, uma relação conflituosa e ambígua.
E causa parece ser induvidosa. A Lei 6.533/78.
Isso porque entendem os sindicatos dos artistas, com base nesse antigo normativo, estarem legitimados a exigir que os artistas tenham um registro para poder trabalhar (a DRT) que, aliás, só pode ser obtido com sua prévia aprovação e após ter pago os valores que arbitrariamente estipulam.
Entendem ter o direito de fiscalizar as atividades artísticas no tocante a natureza jurídica da relação havida entre os membros de um grupo de teatro, ao montar um projeto.
Entendem poder exigir de todos aqueles que participam de projetos teatrais a comprovação da autorização que ele próprio expede, sob as penas da lei.
Entendem ter a prerrogativa de exigir daqueles que participam de projetos teatrais, atores e técnicos, a comprovação do pagamento da contribuição sindical a seu favor, sob pena das sanções previstas em lei
Entendem ter o poder de cancelar uma temporada, caso não se comprove que o autor do texto a ser apresentado esteja recebendo seus direitos autorais, mesmo para grupos amadores e, mesmo sem qualquer solicitação ou conhecimento do dramaturgo.
Esses detalhes e outros tantos podem ser obtidos no site intitulado Oficina de Teatro, onde são relatadas diversas experiências relacionadas a essas questões. (2)
É inegável que a postura de tais organismos sindicais causa lesão aos atores, propiciando, a nosso sentir, a negação de seus direitos.
Afora isso, há que levar em conta a afronta ao próprio ordenamento jurídico que, erigido pelo legislador como caminho seguro para se atingir o bem comum, parece estar sendo usado para fins opostos.
Ademais e, sobretudo, a nosso ver, referida lei encontra-se integralmente revogada desde 1988, incompatível que é com a atual Ordem Constitucional.
De fato, nos termos do art. 1º, III e IV da CF, são fundamento da República Federativa do Brasil, dentre outros, a “dignidade da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.
A Constituição prevê, ainda, em seu artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Por sua vez o inciso XIII do art. 5º estabelece que “é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
Pois bem. A exigência sindical de aplicação da Lei 6.533/78 contraria tais dispositivos constitucionais.
De fato, referido normativo, ao regular em meados do século passado o exercício das profissões de Artista e de Técnico em Espetáculos de Diversões, disciplinava que:
“Para registro do Artista ou do Técnico em Espetáculos de Diversões, é necessário a apresentação de:
I - diploma de curso superior de Diretor de Teatro, Coreógrafo, Professor de Arte Dramática, ou outros cursos semelhantes, reconhecidos na forma da Lei; ou
II - diploma ou certificado correspondentes às habilitações profissionais de 2º Grau de Ator, Contra-regra, Cenotécnico, Sonoplasta, ou outras semelhantes, reconhecidas na forma da Lei; ou
III - atestado de capacitação profissional fornecido pelo Sindicato representativo das categorias profissionais e, subsidiariamente, pela Federação respectiva.
§1º - A entidade sindical deverá conceder ou negar o atestado mencionado no item III, no prazo de 3 (três) dias úteis, podendo ser concedido o registro, ainda que provisório, se faltar manifestação da entidade sindical, nesse prazo.
§ 2º - Da decisão da entidade sindical que negar a concessão do atestado mencionado no item III deste artigo, caberá recurso para o Ministério do Trabalho, até 30 (trinta) dias, a contar da ciência.
Art. 8º - O registro de que trata o artigo anterior poderá ser concedido a título provisório, pelo prazo máximo de 1 (um) ano, com dispensa do atestado a que se refere o item III do mesmo artigo, mediante indicação conjunta dos Sindicatos de empregadores e de empregados.
Art. 9º - O exercício das profissões de que trata esta Lei exige contrato de trabalho padronizado, nos termos de instruções a serem expedidas pelo Ministério do trabalho”.
Ousa-se afirmar, contudo, que a obrigação de obter um registro para exercer a profissão, tal como previsto na norma citada atenta contra a liberdade de expressão e o regime constitucional vigente no país, violando, assim, o inciso IX do art. 5°, da Constituição, segundo o qual:
“IX - É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”
De fato, a ausência de risco envolvido com tal atividade, diferentemente de outras profissões onde há necessidade de proteção do interesse público, a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não devem sofrer qualquer restrição.
Em seus Comentários à Constituição Antonio Sampaio Dória afirma, com razão, que:
“A lei, para fixar as condições de capacidade técnica, terá de inspirar-se em critério de defesa social e não em puro arbítrio. Nem todas as profissões exigem condições legais de exercício. Outras, ao contrário, o exigem. A defesa social decide. Profissões há que, mesmo exercida por ineptos, jamais prejudicam diretamente direito de terceiro, como a de lavrador. Se carece de técnica, só a si mesmo prejudica. Outras profissões há, porém, cujo exercício por que não tenha capacidade técnica, como a de condutor de automóveis, piloto de navio ou aviões, prejudica diretamente direito alheio. Se mero carroceiro se arvora em médico operador, enganando o público, sua falta de assepsia matará o paciente. Se um pedreiro se mete a construir arranha-céus, sua ignorância em resistência de materiais pode preparar o desabamento de prédio e morte dos inquilinos. Daí, em defesa social, exigir a lei condições de capacidade técnica para o exercício de determinadas profissões cujo exercício possa prejudicar diretamente direitos alheios, sem culpa das vítimas”. (1)
De fato, de acordo com a Carta Republicana, a Liberdade é um Direito Fundamental, de forma que toda restrição deverá ocorrer necessariamente de uma imposição necessária à proteção do interesse coletivo.
E, como a arte não causa danos, não há que se admitir restrições à sua manifestação. A liberdade deve prevalecer. Logo, a Lei acima citada, ao exigir registro para o exercício da função conflita com a atual Ordem Constitucional, de forma que não pode, mais, ter exigibilidade.
Com efeito, em situação análoga, o STF ressalta que “exigir do músico inscrição em conselho para o exercício da sua atividade equivaleria a exigir do escritor o mesmo, ou do jornalista”. E concluiu:
“Assim, a exigência de registro num Conselho ou Ordem Profissional é absolutamente inconstitucional, porque não há qualquer função pública legítima, de fiscalização dessa profissão, que possa ser atribuído a esse Conselho. Ele permaneceria, assim, como uma superada corporação de ofício, sem desempenhar qualquer função de interesse público que pudesse justificar-lhe a criação, a pretender monopolizar o exercício de uma atividade vulgar. A admitir tal Conselho, todas as atividades, a pretexto de reclamarem moralidade ou honestidade de suas exercentes, se viriam a constituir em Ordens profissionais”. (3)
O Ministro Ricardo Lewandowski levanta um ponto relevante na discussão, e seu fundamento pode também ser aplicado aos artistas. Veja-se:
“O interessante é que uma das características dos regimes totalitários é exatamente essa: ele imiscui-se na produção artística. Quem não se lembra do realismo soviético, em que se bania a arte abstrata e outras manifestações? ” (4)
De fato, a liberdade artística assim como a liberdade musical e a jornalística estão garantidas na Constituição da República como liberdades civis, e, como tal, não podem ser limitadas por restrições infraconstitucionais.
Com efeito, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, XIII, ao assegurar a liberdade de exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, deixa claro que o exercício profissional é franqueado a todos.
É bem verdade que ao afirmar que devem ser “atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” deixa claro também que a lei pode exigir de determinada categoria de trabalhadores alguma qualificação, sem a qual o exercício do labor, ofício ou profissão não será permitido.
Não é menos verdade, contudo, que a lei só poderá exigir referida qualificação naqueles casos em que o exercício indiscriminado ou não fiscalizado de certa atividade possa comprometer valores caros à sociedade, tais como a saúde e a segurança, situação de que aqui não e trata.
De se ver, pois - e a leitura do art. 5º, IX, da CF/88 reforça essa conclusão - não haver justificativa em se permitir que os sindicatos dos artistas continuem a exigir capacitação profissional para o exercício da atividade artística, cujo mau exercício só poderá comprometer valores estéticos ou éticos.
É de se aplicar ao caso em análise, o entendimento sufragado pela mais Alta Corte do País ao considerar inconstitucional a exigência de capacitação para o exercício profissional do músico, bem assim o de obrigar os artistas à inscrição e ao recolhimento de anuidades.
A questão, como se pode conferir adiante, está pacificada na jurisprudência em relação aos músicos e aos jornalistas:
“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. MÚSICOS. INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. INEXIGIBILIDADE. ARGÜIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. DESNECESSIDADE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. A garantia constitucional do art. 5º, inc. IX, da CF/88 resguarda a qualquer um o direito de, livremente, manifestar a arte. 2. A atividade a ser fiscalizada deve ser potencialmente lesiva, justificando a atuação no sentido de proteger a sociedade. Compreendida assim a função dos conselhos profissionais, transparece a inadequação de sua atuação na fiscalização dos músicos. 3. A Constituição Federal permite restrições pela lei ordinária, todavia não é toda e qualquer restrição. O legislador não poderá impô-las indiscriminadamente, devendo observar outros princípios constitucionais, preponderantemente o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, com suporte material na cláusula do devido processo legal. 4. A inscrição na OMB deve ser exigida somente dos músicos diplomados com curso superior e que exerçam atividade em razão dessa qualificação, bem como dos que exerçam função de magistério, sejam regentes de orquestras ou delas participem como integrantes. 5. Os músicos que simplesmente apresentam-se para sobreviver, e que representam a cultura popular, não podem sofrer qualquer exigência que configure restrição à manifestação artística. 6. Dispensável a arguição de inconstitucionalidade da Lei nº 3.857/60 perante o Plenário desta Corte, pois segundo o entendimento do STF (p. ex. ADIMC-5/SP e ADIMC-381/DF) a incompatibilidade entre lei infraconstitucional e a Constituição, quando aquela é anterior a esta, se circunscreve ao âmbito da revogação e não da inconstitucionalidade. 7. Tratando-se de ação civil pública, a condenação em honorários advocatícios, quando a ação é de improcedência, é disciplinada pelo art. 17 da Lei 7.347/85, que prevalece sobre o disposto no art. 20 do CPC, somente sendo cabível sua fixação contra associação, quando esta for autora, sucumbente e considerada como litigante de má-fé. 8. Prejudicado o recurso do Ministério Público, no tópico, pois diante do parcial provimento obtido na questão de fundo, a OMB sucumbiu na maior parte do pedido, devendo arcar com os honorários advocatícios, fixados estes em dois mil reais, que devem ser revertidos ao fundo ao qual se refere o art. 13 da Lei nº 7.347/85.9. Apelação parcialmente provida.” (5)
“CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. CONSELHOS PROFISSIONAIS. ORDEM DOS MÚSICOS DO BRASIL. LEI N. 3.857/60. LIMITES DO PODER DE POLÍCIA ADMINISTRATIVA. FISCALIZAÇÃO DA ATUAÇÃO PROFISSIONAL. INSCRIÇÃO E PAGAMENTO DE ANUIDADE. MÚSICO PRÁTICO, SEM FORMAÇÃO TÉCNICA/ACADÊMICA ESPECÍFICA, QUE EXERCE ATIVIDADE ARTÍSTICA. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. ART. 5º, INCISO XIII, DA CARTA MAGNA. 1. Nos termos do inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, 'é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer'. 2. A inscrição no quadro da Ordem dos Músicos do Brasil não é obrigatória a todo músico, mas tão somente àquele que necessite para o exercício efetivo da profissão de capacidade técnica ou formação superior, como é o caso, por exemplo, dos regentes de orquestras sinfônicas e professores de música, ou seja, aqueles discriminados no art. 29 da Lei n. 3.857/60. 3. Verifica-se a necessidade de interpretação, com temperança, do disposto na alínea 'f' do art. 28 da Lei n. 3.857/60, sob pena de se infringir o comando do inc. XIII do art. 5º da atual Constituição. 4. Diretriz jurisprudencial firmada pelo Tribunal Pleno do STF que não altera anterior posicionamento firmado pela Oitava Turma desta Corte, no sentido de que: Nem todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão (STF, RE 414426, Tribunal Pleno, julgado em 01/08/2011). 5. No caso dos autos, os impetrantes, desde que não estejam ocupando postos de trabalho para os quais se exija formação técnica específica (privativas de técnicos, licenciados ou bacharéis em música), não estão obrigados a apresentar inscrição profissional na Ordem dos Músicos do Brasil, tampouco podem ser multados ou compelidos ao pagamento de anuidades pela OMB. 6. Remessa oficial desprovida. Mantida a sentença que concedeu a segurança”. (6)
Há, na mesma diretriz, o seguinte julgado do STF:
“DIREITO CONSTITUCIONAL. EXERCÍCIO PROFISSIONAL E LIBERDADE DE EXPRESSÃO. EXIGÊNCIA DE INSCRIÇÃO EM CONSELHO PROFISSIONAL. EXCEPCIONALIDADE. ARTS. 5º, IX e XIII, DA CONSTITUIÇÃO. Nem todos os ofícios ou profissões podem ser condicionadas ao cumprimento de condições legais para o seu exercício. A regra é a liberdade. Apenas quando houver potencial lesivo na atividade é que pode ser exigida inscrição em conselho de fiscalização profissional. A atividade de músico prescinde de controle. Constitui, ademais, manifestação artística protegida pela garantia da liberdade de expressão”. (7)
Nesse sentido, verifica-se que o trabalho do artista não se insere, portanto, nos casos em que deve ser exigido o registro profissional, por se tratar de manifestação do pensamento constitucionalmente protegida.
Por tal motivo, quanto menos entraves se interpuserem a essa manifestação cultural, elemento fundamental à nossa identidade, mais democrático será o acesso a elas.
A restrição ao direito ao livre exercício profissional dos artistas, por meio de penalidades e imposições de caráter meramente corporativista e cartorial, configura mais um ônus para aqueles que já enfrentam tantas dificuldades em sua atividade diária.
Em um mundo globalizado onde nos deparamos diariamente com novas tendências, que por vezes menosprezam as nossas raízes culturais, devemos apoiar o livre exercício da profissão do artista.
Dessa forma, estaremos contribuindo para a preservação e valorização da cultura brasileira, nas suas mais diversas matizes.
2. O Conflito da Lei 6.533/78 com o Sistema Sindical vigente
Demais, como a seguir se verá, a Lei 6533/78 contraria e contradiz os valores que deveriam ser tutelados.
Isso porque, como não se desconhece, a função primordial de um organismo sindical é a de representação, nos planos coletivo e individual, cabendo-lhe atuar como intérprete das pretensões do grupo que representa, cujas reivindicações deveria incorporar.
A lei em análise propicia, contudo, que a conduta das entidades sindicais caminhe na contramão de seu dever de forma a propiciar a negação dos direitos e dos interesses da categoria que deveria defender.
Com efeito, transformando a atuação sindical em verdadeiros atos antissindicais a lei propicia com que os sindicatos adotem práticas que lesionam o patrimônio jurídico dos artistas, inviabilizando as possibilidades de crescimento e de desenvolvimento da categoria, prejudicando-os no exercício do trabalho que buscam desenvolver.
A título de exemplo e em total desvio de finalidade, olvidando-se que a prerrogativa do ato de fiscalizar é exclusiva da União, sendo intransferível a quem quer que seja, alguns sindicatos utilizam-se de pessoas por ele credenciadas e a quem denominam “agentes fiscais” para exercer a função de fiscalização no tocante a natureza jurídica do trabalho do artista, se empregado, se autônomo, se temporário, se terceirizado, avocando para si atribuição que não lhe é própria.
Tais “agentes”, a toda evidência, não estão investidos de nenhum poder que lhes conceda prerrogativas de fiscais. Essa função cabe, exclusivamente, aos órgãos do Ministério do Trabalho e Emprego, mais especificamente, de suas Superintendências Regionais, através de seus auditores fiscais do trabalho.
Com efeito, nos termos do artigo 626 da Consolidação das Leis do Trabalho:
“Incumbe às autoridades competentes do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, ou àquelas que exerçam funções delegadas, a fiscalização do fiel cumprimento das normas de proteção ao trabalho”.
Consoante cediço, a atuação do auditor-fiscal do trabalho, no âmbito das empresas de prestação de serviços a terceiros ou de suas tomadoras encontra-se regida pela Instrução Normativa nº 03/97 do Ministério do Trabalho e Emprego.
Eis o teor do artigo 5º da referida norma:
“Cabe à Fiscalização do Trabalho, quando da inspeção na empresa de prestação de serviços a terceiros ou na contratante, observar as disposições contidas nesta Instrução Normativa, especialmente no que se refere a:
a) registro de empregado - deve permanecer no local da prestação de serviços, para exame do contrato do trabalho e identificação do cargo para a qual o trabalhador foi contratado, salvo quando o empregado tiver cartão de identificação, tipo crachá, contendo nome completo, função, data de admissão e número do PIS/PASEP, hipótese em que a Fiscalização fará a verificação do registro na sede da empresa prestadora de serviços, caso esta sede se localize no município onde está sendo realizada a ação fiscal;
b) horário de trabalho - o controle de jornada de trabalho deve ser feito no local da prestação de serviços. Tratando-se de trabalhador externo (papeleta), este controle deve permanecer na sede da empresa prestadora de serviços a terceiros;
c) atividade do trabalhador - o agente da inspeção do trabalho deve observar as tarefas executadas pelo trabalhador da empresa prestadora de serviços, a fim de constatar se estas não estão ligadas às atividades-fim e essenciais da contratante;
d) o contrato social - o agente da inspeção do trabalho deve examinar os contratos sociais da contratante e da empresa prestadora de serviços, com a finalidade de constatar se as mesmas se propõem a explorar as mesmas atividades-fim;
e) contrato de prestação de serviços - o agente da inspeção do trabalho deve verificar se há compatibilidade entre o objeto do contrato de prestação de serviços e as tarefas desenvolvidas pelos empregados da prestadora, com o objetivo de constatar se ocorre desvio de função de trabalhador.
Parágrafo único - Presentes os requisitos configuradores da relação de emprego entre a contratante e os empregadores da empresa de prestação de serviços a terceiros ou desvio de função destes, lavrar-se-á, em desfavor da contratante, o competente auto de infração, pela caracterização do vínculo empregatício.”.
De fato, sendo exercício de Poder de Polícia, instituto que consiste na atividade de o Estado limitar o exercício dos direitos individuais, não há dúvida no sentido de que a assunção dessa atribuição pelos sindicatos de trabalhadores constitui exercício irregular de atribuição, caracterizando-se como inequívoca prática antissindical.
Além da esdrúxula fiscalização pelos “agentes” referidos, alguns sindicatos também enviam estranhas e abusivas “notificações” às Casas de Espetáculo expondo o artista a um constrangimento moral, a uma situação vexatória, com afirmações de que, por não terem recebido documentos, tais como contratos de trabalho, registros profissionais, autorizações e contribuições sindicais referente ao espetáculo com estreia marcada, poderiam sofrer medidas administrativas e judiciais para inviabilizar a estreia.
Há também os que comparecem na casa de espetáculo, no dia e hora da estreia de uma peça, por seus “fiscais”, para exigir “a DRT de todo o elenco, pessoas físicas e jurídicas, sob pena de impedir a apresentação do espetáculo”.
Como se vê, desconsiderando as dificuldades da constância e do reconhecimento de um trabalho sério na área, a postura alguns sindicatos vêm se tornando mais e mais preocupada com sua própria sobrevivência econômica.
De fato, invertendo o subvertendo seu papel alguns entes sindicais passaram a impossibilitar muitos profissionais de desenvolver seu trabalho teatral através de seus próprios interesses e de acordo com sua livre convicção. E, ao fazê-lo, passaram também a constranger aqueles a quem deveriam proteger, os artistas.
Além da inadequada forma, essa exigência viola princípio básico do sindicalismo: o patrocínio daqueles cujos interesses representam.
Olvidando-se que as receitas dessas entidades devem ser provenientes de recursos dos próprios integrantes da categoria, ou seja, sendo o sindicato profissional representante "dos artistas" (pessoas físicas) as contribuições compulsórias para seu custeio deveriam advir dos respectivos trabalhadores representados, os sindicatos também arrecadam compulsoriamente valores provenientes de Pessoas Jurídicas.
Ora, a autonomia financeira do sindicato é elemento inafastável que permite exercício de sua representatividade sem qualquer interferência da categoria econômica perante a qual deve buscar a defesa dos interesses de seus representados.
E nessa perspectiva, o art. 2º da Convenção nº 98 da OIT, ratificada pelo Brasil, veda os atos de ingerência das organizações sindicais de trabalhadores e empregadores umas nas outras, proibindo especificamente a manutenção de organizações de trabalhadores por "outros meios financeiros" com o objetivo de controle por parte dos empregadores, nesses termos:
“Art. 2 - 1. As organizações de trabalhadores e de empregadores deverão gozar de proteção adequada contra quaisquer atos de ingerência de umas e outras, quer diretamente quer por meio de seus agentes ou membros, em sua formação, funcionamento e administração”.
Alheio a essa questão os sindicatos continua firme no seu propósito econômico violador do artigo 564 da CLT, segundo o qual:
“Às entidades sindicais, sendo-lhes peculiar e essencial a atribuição representativa e coordenadora das correspondentes categorias ou profissões, é vedado, direta ou indiretamente, o exercício de atividade econômica”.
É inegável que a conduta adotada pelos entes sindicais, através da leitura que fazem da Lei 6533/78, causam lesões aos interesses dos artistas, já que a pretexto de cumpri-la, propicia, em verdade, a negação dos direitos de diversos trabalhadores.
Afora isso há que se levar em conta a afronta ao próprio ordenamento jurídico que, erigido pelo legislador como caminho seguro para atingir o bem comum, é flagrantemente violado pelos sindicatos, sua direção e seus “fiscais”.
3. Conclusão
3.1. A regulamentação de atividade profissional depende da demonstração de existência de interesse público a proteger, devendo observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, somente se justificando naquelas atividades profissionais que tenham algum potencial lesivo. Portanto, não é razoável que se exija a inscrição de que trata a Lei 6.533/78 como condição para o exercício da profissão daqueles que desenvolvem atividades artísticas, já que tal atividade não representa qualquer risco ou ofensa a interesses públicos relevantes.
3.2. Por outra senda, a lei em análise, no foro sindical, tem proporcionado a exposição dos trabalhadores a vários tipos de lesão, gerando inúmeros comportamentos suscetíveis de serem enquadrados como antissindicais.
3.3. Dentre os diversos agentes da prática de ato antissindical destacam-se os próprios sindicatos dos trabalhadores estruturalmente propensos à materialização destas condutas por força do normativo referido, ainda que indiretamente, através de seus dirigentes e prepostos.
3.4. Sendo esta uma das formas mais perigosas e insidiosas de violação às liberdades sindicais, urge um controle desse proceder, reclamando um papel mais atuante dos organismos públicos na proteção da liberdade sindical, eis que, como é curial referida liberdade constitui um elemento indispensável para qualquer Estado contemporâneo democrático, na medida em que o progresso das relações sociais depende da escorreita e justa atuação dos sindicatos, que devem cumprir a sua função indelegável, sempre, na defesa da dignidade do trabalho.
3.5. Logo, quer pela incompatibilidade com a Carta Republicana, quer pela incompatibilidade dos normativos que regulam os Organismos Sindicais, a Lei 6.533/78 deve ser considerada revogada e, portanto, inexigível.
Maria Doralice Novaes*
*A autora é paulistana. Graduada e Pós Graduada em direito do trabalho Tem diversos cursos de extensão, inclusive os de Gestão Pública, Gestão Avançada Sênior, Estratégia e Liderança. Ingressou na magistratura em 1980. Exerceu a função de Juíza Presidente da 6ª Junta de Conciliação e Julgamento da Cidade de São Paulo de 1984 a 1995. Foi promovida para o cargo de Desembargadora Federal do Trabalho em 1995. Atuou como membro titular de Comissão Examinadora em inúmeras Bancas de Concurso. Atuou em Brasília, junto ao TST de 2004/2010 como Ministra Convocada. Integrou, por três vezes consecutivas, por escolha do Pleno do TST, lista quíntupla para preenchimento da vaga de Ministro da Corte. Foi Conselheira do Conselho Nacional da Justiça do Trabalho. Presidiu Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região no biênio 2012/2014. Aposentou-se em 2015 dedicando-se, hoje, à auditorias e consultorias jurídicas. Atua também como parecerista. Preside e coordena a Comissão de Informatização do TRT/2 e de Implantação do Pje em São Paulo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. DORIA, Antonio Sampaio - Comentários à Constituição Federal, 2001, pág. 637.
2. OFICINA DE TEATRO. http://oficinadeteatro.com/conteudotextos-pecas-etc/artigos-diversos/366-satedsp-quer-acabar-com-o-teatro. Acesso realizado em 13/11/2016.
3. STF - Recurso Extraordinário 414426, Relatora Ellen Grace, Pag. 04. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=6283 95.
4. STF - Recurso Extraordinário 414426, Relatora Ellen Grace, Pag. 03. http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=6283 95.
5. TRF-4 - AC: 28464 PR 2000.70.00.028464-8, Relator: MARGA INGE BARTH TESSLER, Data de Julgamento: 20/05/2003, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 04/06/2003, Pág. 557.
6. TRF-2 - AMS 200550010060540, Desembargador Federal GUILHERME CALMON – Oitava Turma Especializada, DJU - Data: 27/11/2006, Pág. 247
7. STF - Recurso Extraordinário 414426, Relatora Ellen Grace, Pag. 01 http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=6283 95