MEMÓRIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
ANA MARIA CONTRUCCI BRITO SILVA
Texto publicado na revista do TRT/2 de nº 17/2015
“Teodoro falou uma coisa alinhada de perfeita: a vocação é um afeto” (Prado, Adélia. Manuscritos de Felipa, p. 104)
Depois de tantos anos no exercício da judicatura no Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região despediu-se por força da aposentadoria uma Juíza Valorosa. Uma referência para toda a magistratura, a DESEMBARGADORA ANA MARIA CONTRUCCI BRITO SILVA.
Mais do que injusto, seria imperdoável produzir um texto para homenagear a passagem de sua Excelência para a inatividade. Essa entristece e desfalca o Judiciário.
O propósito que dá sentido a este registro é bem mais desafiante. Agradecer a generosidade e a perene importância da vida e do trabalho de Ana Maria à Justiça do Trabalho de São Paulo, quase uma dívida na contrapartida à confiança depositada por ela no ofício. Comemorar a história de vida dessa magistrada. Reconhecer publicamente os valores de Sua Excelência, as lições que deixa. Afinal, uma juíza desta envergadura nunca se vai. Sua palavra ficará para sempre nos seus escritos, nos seus passos e no testemunho daqueles que a conheceram.
E, nessa senda, começo pela confissão de um sentimento conflituoso, ambíguo. Assim como me sinto extremamente gratificada por poder homenagear essa desembargadora = essa grande amiga = sinto também, uma espécie de nostalgia de tempos idos e, com ela, uma imensa vontade de resgatar velhas histórias em comum.
Mas, como sei que a nostalgia nesses novos tempos é considerado o oitavo pecado capital deixo de lado as possíveis reminiscências pessoais, para tentar transferir para o leitor um pouco mais do que permitem as aparências.
Inicio, assim, reconhecendo essa magistrada como um ser de elevado espírito público que dedicou parte relevante de sua vida à Justiça do Trabalho adotando uma receita muito simples: a ética, o trabalho e o estudo.
Natural de Assis, no estado de São Paulo, cidade conhecida como “a terra do amor, a terra da paz”, parece ter vindo daí a fórmula que permaneceu marcadamente sólida na sua vida, já que com ela, construiu sua trajetória.
Filha de Edison Brito, dentista e Noêmia Contrucci Brito, professora primária, de quem recebeu sólida formação moral e religiosa viveu na cidade natal até dois anos de idade, quando a família resolveu instalar-se na cidade grande, São Paulo, logo após alcançar o sonho de ganhar na loteria, contemplados que foram com a premiação de um bilhete.
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De família religiosa, sempre estudou em colégio de freiras, fato este que sem dúvida a conduziu a participar durante toda sua vida em projetos sociais mantidos ou não por irmandades religiosas.
Graduada na turma de 1980 pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, iniciou sua carreira no serviço público mesmo antes de se formar. Foi escrituraria na Secretaria do Trabalho; escrevente no Fórum Cível, operadora de telecomunicações na Secretaria da Segurança e Oficial de Justiça no TRT/2.
Apaixonada pelo direito, logo prognosticou que seria magistrada e, ao conhecer dois grandes mestres da área trabalhista, Amauri Mascaro Nascimento e Nair Lemos Gonçalves passou a ter certeza de que a Justiça do Trabalho seria a submissão, a mais completa, aos desígnios de sua vocação.
Principiou nessa trajetória, o difícil concurso de ingresso à Magistratura do Trabalho. Eram dias e noites, sábados e domingos com dedicação integral aos estudos. Sofreu derrotas. Reverteu-as. Comemorou a vitória com todo seu ser. Era uma vencedora ou, melhor dizendo, uma gladiadora. Mais do que uma metáfora, ai está seu verdadeiro legado.
No desafio da magistratura que exerceu de forma continuada desde 1986 pode vivenciar a pujança do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região e conviver em harmonia com magistrados, procuradores, advogados e partes a demonstrar que a construção da justiça só se plenifica com a integração leal, franca, respeitosa e determinada de todos os membros da comunidade.
Foi Juíza Substituta até 1990. Promovida à Juíza Titular exerceu tal mister nas cidades de Santos, São Bernardo do Campo e na Capital de São Paulo, presidindo as então 39ª e 56ª Juntas de Conciliação e Julgamento.
Promovida à função de desembargadora em 2001 exerceu no TRT/2 um trabalho profícuo. Seus atos e sua participação ativa na vida da Corte revelaram a figura de uma pessoa sempre comprometida com o direito e com a democracia.
Muito cedo se engajou na vida associativa da Magistratura do Trabalho, nela encontrando uma terra fértil. Criou o primeiro jornal que veio a circular pela Amatra/SP. Integrou a Comissão de Prerrogativas da Associação. Foi sua Conselheira.
Incansável na busca do bem comum e, graças à confiança que todos nela depositavam, envolveu-se também na gestão do Tribunal. Foi Auxiliar da Corregedoria. Contribuiu largamente com a Presidência do TRT/2. Idealizou e implantou o então inédito Sistema de Leilões Unificados. Participou de Bancas Examinadoras em concursos de ingresso à magistratura. Integrou Grupos de Estudo para adequação das atividades dos magistrados. Presidiu a eficientíssima Comissão de Acessibilidade, através da qual introduziu no TRT/2 conceitos de acessibilidade universal, alertando-nos a todos acerca da responsabilidade que temos na concepção e na construção de espaços acessíveis.
A carreira e a atuação de Ana Maria foram tão bem sucedidas e retas que dispensariam, por si só, qualquer espécie de elogio. A alta qualidade, sempre constante, tanto do ser, quanto de sua obra falam por si. Exemplos não faltam. Os Leilões Unificados não só vingaram como se tornaram modelo em todo Brasil. As conquistas alcançadas pela Comissão de Acessibilidade foram tantas e tão expressivas que o Tribunal Superior do Trabalho a indicou como paradigma nacional. O patrimônio intelectual obtido em cada uma dessas causas serve até hoje como alavanca para atender mais e melhor o jurisdicionado.
Como se vê, a atuação constante e significativa da Desembargadora Ana Maria, mesmo velada pelo manto da discrição, liderou iniciativas e solidariedade humana que alcançaram muitos indivíduos, beneficiando um incontável número de pessoas.
Como resultado de muita luta Ana Maria = que reuniu forças e multiplicou aplausos = tem a absoluta estima de todos na Corte. Como em uma fotografia, a refinada qualidade de seu trabalho, o fato de Sua Excelência irradiar simpatia e confiança, de ser uma exímia esgrimista mental, de argumentar com persuasão, de não parar nunca, nem no tempo, nem no tema, de saber comandar e ser firme, de fazer do culto à Justiça e ao Direito uma de suas paixões estarão indissociavelmente impressas na história do Tribunal e dele levarão suas impressões para a vida adiante.
Sua vida familiar também sempre foi intensa. Pudera! Mãe de cinco filhos, Adriano, Kátia, Leonardo, Renato e Gilda e avó de oito netos, Pedro, André, Thiago, Henrique, Gabriel, Carina, Guilherme e José Vitor, sua rotina nesse particular tinha mesmo que ser agitada. Qualquer hora era hora de fazer o que quer que precise ser feito por qualquer um deles. Sua história de vida parece ter sido construída pelas histórias de muitas outras vidas, a história de sua grande família. Sempre cúmplice da vitória de todos e de cada um, ela foi e ainda é o esteio de todo clã. Parece que nessa senda Ana Maria herdou da mãe, Noêmia, um verdadeiro tesouro. Uma herança preciosa. Herdou o olhar amoroso e a bênção capaz de transformar todas as coisas. Para melhor. Tal como a mãe sempre foi capaz de transmitir à família uma confiabilidade juntamente com a acolhedora atitude carinhosa de cuidados e atenção pessoal.
No campo pessoal é, antes de tudo, amiga de seus amigos e leal a todas as normas de cumplicidade. É protetora. Sua patota sabe que pode contar com ela. Nessa seara, seus horizontes são grandes e todos os seus limites são elásticos. Sempre deixa claro que um amigo nunca estará mais distante dela do que o alcance de uma necessidade. Reserva a cada um dos amigos um sorriso caloroso e um tratamento gentil.
Ventos tufões, ventanias, coriscos, terremotos, convulsões da terra, da carne e da alma jamais abalaram seu interesse e seu amor pelas pessoas ou pelo trabalho. Essa é a sua natureza: na adversidade sempre caminha sorrindo. Nutre-se, por certo, numa fonte inesgotável de sabedoria. Nunca deixa de falar a linguagem do coração. Talvez por isso tenha superado todas as adversidades. Os sonhos, os afetos e a religiosidade fervorosa servem-lhe de alimento, e dão brilho à sua vida.
A Fé que carrega dentro de si é um de seus tesouros mais preciosos. Contempla o mundo como sendo a manifestação da admirável sabedoria divina. O Espírito Santo parece estar dentro dela constituindo a sagrada força vital que a guia em todas as circunstâncias.
O Tribunal Regional do Trabalho da Segunda Região deve muito à desembargadora Ana Maria e à sua fé. Isso porque ela sempre acreditou que nele haveria flores e desejou vê-las incansavelmente. Conseguiu suas conquistas mais com o sorriso e amor do que com a espada. Transformou as dificuldades em oportunidades. Removeu as pedras e fez diferença.
E nós, mulheres que integram a Corte Trabalhista de São Paulo também lhes somos devedoras. Não só por nos sentimos muito bem representadas, mas, também, por termos sido respeitadas e valorizadas por Sua Excelência que, rompendo a barreira do gênero, administrou sua carreira profissional sem abrir mão de sua condição feminina.
É por isso que invocamos no momento de sua despedida todas as mulheres que vieram antes e deixaram suas pegadas, mães, avós, amantes, esposas, irmãs, imperatrizes e sacerdotisas de todos os tempos. Cleópatras, Dianas, Perséfones, Kalis, Marias Antonietas e Madalenas. Pachamamas, Mulheres Luas, Mulheres Serpentes, Panteras e Lobas. Conhecidas e desconhecidas. Mulheres que se sentiram enredadas em suas vidas, feridas no seu feminino, mulheres subjugadas, submetidas, degradadas ao longo da história da Humanidade. Todas, juntas, tentando acertar o passo da Dança da Beleza, para render homenagens a ANA MARIA CONTRUCCI BRITO SILVA = a essa mulher guerreira = que sempre soube que só conhecendo e respeitando profundamente o diferente é que se constrói o novo. E, mais, que isso só pode ser feito com forte determinação, atributo que seguramente tem por demais.
E, para encerrar, um pequeno texto para a amiga Ana Maria que aceitou e viveu o desafio de construir sua existência de forma significativa, perseverante e sensível, sem nunca perder de vista que “há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos”. (Fernando Teixeira de Andrade)
Chegou pisando de mansinho com o coração suspenso.
Os olhos emocionados perderam-se na imensidão.
Contemplou o prédio e suas fartas janelas de vidro a transpirar segredos.
Quanto brilho e quanta luz! Quantas histórias jamais contadas!
Grandes e pequenos registros. Emoções, mosaicos e inscrições sem fim.
A certeza ecoou fundo em su’alma.
Mesmo sabendo que era anunciada a hora da partida,
Compreendeu que ali viveu seu poema de amor à vida.
Ali viveu seu instante de amor à Justiça.
Regressou renovada.
Com a certeza de que valeu a pena.
A vida foi ali vivida com a intensidade de uma verdade.
Maria Doralice Novaes